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segunda-feira, 12 de março de 2018

O que achei? Todo Dia a Mesma Noite, a história não contada da boate Kiss

Eu tinha 16 anos quando vi a noticia sobre o incêndio na boate Kiss pela televisão, tinha acabado de acordar, estava passando pela sala quando ouvi e parei para assistir. 242 mortos, mais de 600 feridos. Eu não conhecia nenhuma das vítimas, nenhuma das famílias que sofreram com essa tragédia. Mas eu senti dor, lembro até hoje, eu chorei, eu não sei explicar direito o sentimento todo, mas foram 242 jovens, com toda uma vida pela frente, pessoas que só queriam se divertir. Eu procurei o nome de muitas das vítimas no Facebook, queria dar um rosto para aqueles números, pelo menos alguns, lembro de uma postagem de uma das funcionárias, ela avisava que a boate estava pegando fogo e pedia ajuda, ela não sobreviveu. Aos poucos as histórias sobre as vítimas iam aparecendo, diversas pessoas que, apesar de terem conseguido sair de dentro da boate, voltaram para resgatar amigos, familiares, desconhecidos, alguns não saíram novamente. O Fabrício Carpinejar foi no programa da Fátima Bernardes e descreveu como tudo aquilo o mudou, mudou a forma como ele se despede da filha, o jeito do abraço, e mudou em mim também, depois daquele dia, a primeira coisa que faço quando chego em algum lugar, qualquer um, é observar, prestar atenção em onde ficam as saídas de emergência, evito estar em lugares que só possuem uma única entrada/saída, tento entender a forma como os seguranças se posicionam, e penso em onde posso me esconder, para onde posso correr se alguma coisa der errado, e também mudei o abraço com meus familiares, muitos daqueles pais não sabiam que seriam a última vez que veriam os filhos, e comigo também pode ser assim.
Lembro de ver imagens dos mortos, lado a lado, na rua, de ver alguém comentando sobre os celulares que tocavam sem parar e que no visor quase sempre era a palavra "mãe" que aparecia. 






Durante a leitura desse livro me lembrei de várias histórias que ouvi aquele dia, do amigo que lutava para sair da boate com a amiga e sentiu quando a mão dela deixou a sua, do som incessante dos celulares tocando ao lado dos corpos das vítimas, do amigo que voltou para buscar outro amigo e não conseguiu sair. Esse livro é denso, triste, pesado, e não poderia ser diferente. Eu não ouso dizer que sei como as famílias se sentiram, mas não houve uma página em que eu não precisei fazer uma pausa, dar uma respirada para poder continuar. 

É muito tocante o relato de todos, o livro é extremamente detalhista e eu quase sinto como se estivesse lá naquela noite, sinto a adrenalina no meu corpo, a tristeza, não igual a dos que de fato viveram aquilo, nunca poderia ser, mas sinto.
A autora, Daniela Arbex, foi muito sábia nesse livro, os relatos, todos, são emocionantes de uma forma tão sensível. A história é narrada do ponto de vista de várias pessoas, entre elas sobreviventes, bombeiros, médicos e familiares das vítimas. É tudo tratado com muito cuidado, eu ficava aflita, a cada página, mesmo sabendo o final, sabendo de todas as vítimas, eu me pegava torcendo para que determinados pais encontrassem seus filhos vivos, para que aquele senhor não encontrasse o carro do filho no estacionamento. 
É imensurável a importância desse livro, desde a primeira página venho indicando ele para os meus amigos, essa história não pode ser esquecida, caso isso aconteça corremos o risco de que ela se repita, ninguém pode ignorar todas essas histórias, essas vidas. 



Esses foram os trechos em que mais me emocionei, revoltei ou chorei. 


"Durmo nas imagens e lembranças.
 As vozes se misturam na minha mente.
 O tempo não passa. "

"Jovens morriam na frente de todos, uma cena insuportável até mesmo para quem foi treinado para enfrentar situações-limite. "

"Apesar da gravidade do caso, sentiu alivio ao imaginar que entre os cerca de 1.100 frequentadores naquela noite quase todos tinham saído ilesos.
- Sargento, dá uma olhada aqui - chamou um combatente, apontando na direção dos banheiros masculinos e feminino, próximo a entrada da boate.
Muller seguiu e foi tomado pelo espanto ao observar a entrada dos toaletes. Para se proteger da fumaça ou achar a saída, que ficara ás escuras durante o incêndio, único local onde a luz de emergência continuava acesa. Muitos foram pisoteados. Todos morreram asfixiados.
Diante da pilha de corpos, o sargento sentiu as forças de seus braços esvaírem. Percebeu que homens e mulheres haviam morrido entrelaçados uns aos outros, caídos entre as portas arrancadas dos sanitários individuais na tentativa alucinada de buscar ar na janela do basculante- que também estava lacrada.
Nenhum treinamento o havia preparado para lidar com a dor que sentiu no momento em que se viu tomado pelo mais humano dos sentimentos: a compaixão.
- Nós não salvamos ninguém - repetia, em choque.- Não salvamos ninguém."

"A capitã da brigada caminhou pela Kiss atordoada não só com o que viu, mas com o barulho dos celulares das vítimas. Os aparelhos tocavam juntos e cada telefone tinha um som diferente. (...) Na maioria dos casos, porém, o visor indicava a mesma legenda: "mãe", " mamãe", "vó", "casa", "pai", "mana". Aquela sinfonia da tragédia era tão insuportável quanto a cena que Liliane presenciava. Como lidar com um evento dessa proporção?"

"Marcia não teve tempo de pensar se estava preparada para aquela tarefa, apenas fez o que parecia inacreditável: ajudou a descarregar 233 corpos. Ao puxar os cadáveres pelos pés e pelas mãos, não tinha noção de quem levava para dentro do ginásio. Eram tantas as vítimas, que ela não conseguia mais fixar sua atenção nas características individuais, a não ser o olhar d pânico de um rapaz cuja imagem jamais esqueceria."

"No entanto, as características da Kiss, que teve todas as suas saídas de ar vedadas, transformariam o evento em um dos maiores do mundo quando se fala em vítimas de incêndios em ambientes fechados. Nos dias que se sucederam a tragédia, a Kiss seria comparada a uma ratoeira, verdadeira armadilha para jovens que jamais desconfiaram que não estavam seguros."

"O ginásio onde os mortos tinham sido colocados continuava fechado para a finalização dos trabalhos da perícia. Foi quando teve início o cumprimento de um protocolo vergonhoso: a entrada dos políticos. 
Ignorando a dor de todas aquelas pessoas, autoridades e suas comitivas tiveram acesso ao ginásio, liberado antes da entrada dos pais. E nem todos mantiveram uma postura respeitosa diante dos cadáveres. Várias fotos começaram a ser feitas, levando a capitã da brigada Liliane a dar voz de prisão por quatro vezes. Se havia por parte do grupo político alguma ideia de solidariedade, também havia muita curiosidade em torno do incêndio e de quem fora vítima, deixando indignados os grupos de profissionais que corriam contra o tempo para devolver aquelas pessoas as suas famílias."

" - Minha filha não está mais aqui - repetia para si mesma, tentando encontrar algum consolo em toda aquela situação.
Aquela não era mais a sua menina. Era o corpo número vinte."

"A capitã da brigada Liliane trabalhou sem trégua desde a madrugada de domingo para resgatar os corpos na Kisss e entregá-los a seus familiares. Estava tão focada nessa tarefa que nem se lembrou de vestir a farda. A questão humana, para ela, ia muito além das convenções sociais e do regimento da corporação militar, embora, mais tarde, tenha sido surpreendida com a abertura de um inquérito sobre sua vestimenta. Outros militares, igualmente sem farda, foram questionados por seus superiores."

"Quando Maria Aparecida Neves, 53 anos, abriu uma das seis portas do armário castanho-claro, no quarto da casa de madeira em Vila São João Batista, precisou reunir coragem para fazer a escolha mais difícil de sua vida: definir a roupa que o filho vestiria pela última vez. Dezenove anos antes, coubera a ela um gesto semelhante: separar o que Augusto usaria não após sua morte, mas após seu nascimento."

"Embora estivesse sem o filho havia poucas horas, a saudade que sentia não cabia em lugar nenhum, muito menos dentro dela."

"Os primeiros resultados de exames laboratoriais confirmaram a suspeita dos especialistas. Eles apontaram a presença de cianeto no sangue coletado, com consequente bloqueio da cadeia respiratória das células. Ao se espalhar pelo corpo, o ácido cianídrico - um dos venenos com ação mais rápida que se conhece- impede o transporte de oxigênio para órgãos vitais.
Na prática, os frequentadores da Kiss foram envenenados pelo mesmo gás letal usado nas câmaras de gás nos campos de concentração nazistas."

"Abrir os olhos e enfrentar a realidade era tão doloroso quanto perceber o corpo mutilado. Não seria nada fácil carregar o rótulo de sobrevivente. Depois da Kiss ninguém mais seria o mesmo. Ninguém."

"Para quem perdeu um pedaço de si na Kiss, todo dia é 27. É como se o tempo tivesse congelado em janeiro de 2013, em um último aceno, na lembrança das últimas palavras trocadas com os entes queridos que se foram, de frases que soarão para sempre como uma despedida velada."

"O fato é que só em 2009 a Kiss foi multada cinco vezes por descumprimento de exigências legais. Apesar disso, continuou aberta."

"Na prática, a Kiss ficou aberta por 41 meses e 27 dias. Nesse período, por 31 meses, funcionou sem o Alvará Sanitário, incluindo o dia da tragédia. 
Por vinte meses, funcionou sem o Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndio. Por sete meses, funcionou sem o Alvará de Localização."

"A distância do palco até a única porta de acesso a Kiss é de apenas 32 passos. Mas, com a superlotação, a deficiência de sinalização de emergência e a existência de guarda-copos por todo o trajeto, inclusive na entrada da casa noturna, achar a saída ao lado de cerca de mil pessoas, simultaneamente, era quase impossível. Iniciou-se, então, uma correria."

"Pensando se tratar de uma briga generalizada, Marfisa Soares Caminha, que trabalhava na Kiss como caixa, trancou a porta de acesso ao cômodo em que estava na tentativa de se proteger. Ela morreria ali a menos de um metro da saída. "

"Sem radiocomunicadores, seguranças da boate que não sabiam o que estava acontecendo fecharam as portas para impedir que os frequentadores saíssem sem pagar a comanda de consumação. Desesperados, os jovens informaram sobre o incêndio. Sem visibilidade para o palco, eles demoraram alguns segundos para liberar a saída."

"Na frente dele um rapaz mais alto. Acabou sendo pressionado contra as costas desse homem. A força dos que vinham atrás era tão grande que era como se ele fosse se partir ao meio. A fumaça fazia arder os olhos. Maike tentava buscar ar, mas sua garganta ardia.
- Mery, vai rápido, rápido - pedia. 
Quase sem força para continuar, Maike sentiu a mão da amiga escapar da sua.
Desse momento em diante ele não viu mais nada. Desmaiou em meio a multidão.  Acordou na rua, desorientado, sem a jaqueta marrom de couro que usava. Estava só de calça e tênis.  Naquele instante o universitário não fazia a mínima ideia de que todos os sete amigos que entraram com ele na boate morreriam."


"Para as vítimas indiretas do incêndio na Kiss resistir não é uma escolha, mas um imperativo de sobrevivência. Resistir ao cansaço da espera por alguém que não voltará, ao silêncio imposto pela ausência, a dor que teima em ficar, por mais que se queira livrar-se dela. Resistir não só a perda, mas ao esquecimento, que busca sepultar os erros que contribuíram para que o dia 27 de janeiro de 2013 não terminasse para mais de duzentas pessoas. "

"Se a recordação de uma tragédia é dolorosa, imagine carrega-la dentro de si. As mães de Santa Maria sabem perfeitamente o que é isso. Alias, só elas conseguem dimensionar a devastação causada pelo esquecimento do som da risada do filho. "








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